A visita

“Dama com Arminho”, por Leonardo Da Vinci

Não passava das vinte e duas horas quando Olívia decidira sentar-se aos pés de sua cama para tirar cinco minutos de descanso do atarefado dia que tivera em seu trabalho. Era apenas mais uma noite quente de dezembro, mas de alguma maneira inexplicavelmente estranha, a chuva se apossara dos últimos três dias para mudar radicalmente os planos de quem pretendia se divertir sem se molhar um pouquinho que fosse. Olhando ao seu redor e não encontrando nada de estranho pelo quarto escuro, aquela não era a primeira vez que a garota sentia a estranha sensação de estar sendo observada por milhares de pares de olhos invisíveis. Deixando o cômodo e sentindo o desconforto de estar mais uma vez enclausurada no grande apartamento de dois quartos que dividira com outras duas colegas de faculdade (Karen e Clarice), o único desejo de Olívia para aquela sexta-feira estressante era tomar uma chuveirada morna antes de cair em um sono que a transportaria para a manhã do dia seguinte.

Arrastando-se até o banheiro e certificando-se de ter pego tudo o que precisaria para não sair correndo pelo apartamento respingando água e espuma pelo carpete de madeira, Olívia trancou-se ali e ligou o pequeno rádio preto de Clarice, deixando-o tocar em uma estação qualquer apenas para manter sua cabeça ocupada. Desde que saíra da grande empresa aonde trabalhava e passara por todas aquelas ruas desertas desviando dos grossos pingos de chuva em direção à sua casa, a prodígio garota de 25 anos não entendia o porquê de sentir aquele estranho frio na espinha que a deixava completamente arrepiada. De alguma maneira sobrenaturalmente desmotivada, aquele curioso fato repetia-se pela terceira vez consecutiva apenas naquela semana – algo que, de acordo com os pensamentos de Olívia, deveria ser apenas mais um sintoma da estressante rotina que levava dia após dia.

Abrindo a torneira e adentrando aquela relaxante cascata de água que caía do novo chuveiro que comprara como uma forma de “presente para a casa”, Olívia fechou os olhos enquanto sentia seu corpo inteiro ser invadido pela espuma que se formava do shampoo e do sabonete que acabara de usar. Foi nesse exato momento que o telefone fixo do apartamento começou a tocar incessantemente – o que, para Olívia, era de longe um grande problema: esperara por aquele banho durante todo o dia, e não seria um mero telefonema o responsável por estragar o maior prazer de sua noite. Se o assunto a ser tratado fosse tão importante assim, com certeza ligariam mais tarde.

Ensaboando-se enquanto deixava toda a energia negativa da sua rotina descer ralo abaixo, a moça estava quase finalizando o banho quando ouviu a porta de entrada do apartamento bater com bastante força. Dando um pulo que a fez escorregar e bater a perna no boxe do banheiro, Olívia soltou um gritinho baixo enquanto levava suas mãos até a boca em uma instintiva tentativa de segurar qualquer som que entregasse sua presença no local. Secando-se com pressa e correndo para desligar o rádio, a garota pensava, naquele momento, qual seria a atitude mais sensata a se tomar em uma situação tão desconfortável como aquela: correr para o interfone e pedir a ajuda do porteiro geral, ou continuar trancada no banheiro, sozinha, até que alguma das meninas chegasse da rua.

"Dama com Arminho", por Leonardo Da Vinci
“Dama com Arminho”, por Leonardo Da Vinci

Para sua total falta de sorte, seu celular provavelmente estaria dentro da bolsa que usara durante todo o dia: objeto que ou deveria estar jogado em cima do sofá ou em qualquer outro lugar de seu quarto – e é claro que ir até o seu encontro, em qualquer dos cômodos que fosse, exigiria todas as suas habilidades atléticas tão pouco desenvolvidas. Enrolando-se na toalha e respirando fundo, Olívia contou até três antes de destrancar a porta do banheiro e encarar a possível companhia que estaria a seu aguardo, pronta para fazer da sua noite um verdadeiro inferno. Cada passada de trinco que a chave dava na maçaneta parecia fazer um eco ensurdecedor não apenas no ambiente, mas também dentro da própria cabeça de Olívia (a qual, naquele instante, não conseguia se concentrar em um único pensamento racional). Dando seu primeiro passo em direção ao corredor e olhando de esgueio para a sala principal, seu peito encheu-se de uma coragem jamais sentida antes que a fez caminhar em direção à porta de entrada sem parar um segundo sequer. Afinal: tudo aquilo poderia ser apenas fruto de sua imaginação e a possibilidade de alguém ter entrado no local nem era tão grande assim. Ela provavelmente chegara cansada do trabalho, esquecera a porta entreaberta, partira para fazer seus afazeres de casa e o vento fizera questão de finalizar o restante do acontecido.

Colocando a mão na maçaneta da porta, Olívia permaneceu ali parada por pelo menos dois minutos sem fazer nada. Ainda sentindo aquela desagradável sensação de estar sendo observada por milhares de pares de olhos invisíveis, resolveu, após não mais aguentar a pressão de se manter inerte por tanto tempo em uma situação tão preocupante, girar sua mão e certificar-se de que a porta estava mesmo, de fato, destrancada. Para sua surpresa, a porta não apenas estava trancada como a sua chave encontrava-se pendurada na parede à sua frente, presa no porta-chaves que ganhara de aniversário de um colega dos tempos de escola. Será que Olívia estava mesmo imaginando tudo aquilo após o estressante dia que tivera no trabalho ou será que a tal porta que ouvira bater era a do apartamento defronte ao seu? Acreditando mais na segunda hipótese (uma vez que os moradores dali viviam entrando e saindo do apartamento vizinho em momentos estranhos tanto do dia quanto da noite), a garota levou suas mãos até a cabeça e soltou um suspiro profundo, fechando seus olhos e sentindo todo o peso de seus ombros evaporar.

Virando seu corpo e pronta para ir até o quarto trocar aquela toalha encharcada por uma roupa sequinha de seu guarda-roupa, Olívia foi surpreendida por uma mão gelada que começou a apertar seu pescoço com uma força incalculável. Procurando a origem daquela mão ou o possível braço de onde ela se formava, a garota não conseguiu disfarçar o pânico ao perceber que a tal mão não apenas não tinha braço como não tinha corpo, pernas ou pés. Tudo o que ela tinha para completar-se era um rosto cinzento com dois olhos grandes e amarelos, um nariz pequeno, quase inexistente, e uma boca cheia de dentes brancos e afiados. Com lábios finos desenhados de uma forma diabolicamente assustadora, a face parecia completamente satisfeita com a cena que presenciava, esbanjando jubilosamente um sorriso que parecia desfrutar cada momento do terror passado pela jovem mulher. Começando a sentir que seus olhos lacrimejavam e seu pescoço ficava roxo, Olívia tentava segurar a mão cinzenta e empurrá-la para longe do seu corpo, mas todos seus esforços eram desperdiçados em vão. Apesar de sentir aquela força de uma forma definitivamente física e presente (de fato a visita sobrenatural não era um mero delírio de sua mente), tudo o que seus dedos tocavam era o ar gélido da sala de estar. Ela tentava gritar, mas a pressão em seu pescoço era tamanha que nenhuma palavra saía de sua garganta.

Perdendo todas as esperanças de sobreviver àquele evento surreal para contar história, Olívia sentiu o maquiavélico rosto cinzento aproximar-se rapidamente de seu ouvido esquerdo e sussurrar cada vez mais alto uma espécie de linguagem ininteligível aos ouvidos humanos. Apavorada com o hálito quente de enxofre que sentia entrar por suas narinas, a garota parou de tentar dar atenção à ânsia de vômito que revirava seu estômago de cabeça para baixo e passou a concentrar-se ao que a voz sibilante dizia repetidamente. Fechando seus olhos para ouvir com maior exatidão as palavras propagadas por aquele ser demoníaco, a surpresa da garota foi grande ao perceber que um nome era, por diversas vezes, pronunciado ao lado de um verbo nada convidativo: matar. Porém, como um balde de água fria e indecisa se aquela revelação era boa ou ruim, a garota passou a ficar atordoada ao descobrir que o nome tão almejado pela face cinzenta não era o seu, mas o de sua amiga Clarice. Repetindo aquele insuportável “matar Clarice” ininterruptamente, Olívia queria dizer àquele ser quem ela era de verdade, mas, isso seria o mesmo que assassinar a garota que conhecera ainda quando criança e passara parte de sua vida ao seu lado.

Por uma fração de segundos, todos os momentos que vivera ao lado de Clarice passaram pela cabeça de Olívia como em uma espécie de retrospectiva de vida. Todas as brincadeiras de criança, as confissões de adolescente e os planos para o futuro (de se casar com o namorado, ter três filhos e morar em uma pequena casa do interior) rodavam a cabeça da garota e deixavam-na tonta, cheia de vertigens e com uma dor de cabeça incontrolável. Molhando seu rosto com as lágrimas que derramava e lavavam o carpete de madeira da sala, Olívia assentiu com a cabeça e, em um último ato de sacrifício, confirmou para a face cinzenta que era Clarice. Afastando-se alguns centímetros do rosto da garota e mostrando-a seus afiados dentes que brilhavam como as presas de um leopardo, a face deu um último sorriso diabólico antes de molhar seus lábios com uma língua negra e cheia de veias expostas. Preparando-se para o primeiro ataque, tanto a face cinzenta quanto Olívia foram surpreendidos pela porta às suas costas, aquela mesma que iniciara todo o embate da noite e era destrancada por alguém do lado de fora.

"La Belle Ferronière", por Leonardo Da Vinci
“La Belle Ferronière”, por Leonardo Da Vinci

Era Clarice.

Sem entender direito o que ocorria dentro de seu apartamento, a jovem companheira de quarto não soube o que dizer ao ver sua melhor amiga ser suspensa pelo ar alguns centímetros do chão sem que nada visível a olho nu pudesse controlá-la. Vendo o rosto da garota completamente desfigurado como se algo a tivesse perfurado por diversas vezes e arrancado parte por parte às dentadas, Clarice não controlou as lágrimas ao ver que a única coisa que identificada Olívia era a sua toalha de banho bordada à mão pela avó da menina. Flutuando ali como uma espécie de marionete sombria e manipulada por um ser invisível que exalava um forte cheiro de ovo podre combinado a carvão, a garota sabia que aquela cena recém-presenciada iria se repetir em seu subconsciente pelo resto de sua vida. Completamente ensopada de vermelho e respingando sangue por todo o chão, Olívia nada mais era do que um pedaço de carne que havia sido atacado por algum predador homicida e sem misericórdia.

Voltando de seu estado de choque e soltando um grito que pode ser ouvido pelos demais moradores do edifício, a reação de Clarice fez com que o corpo de Olívia caísse pelo chão e desmonta-se ali mesmo em duas grandes peças de carne fresca e vermelha – como aquelas que são expostas nas vitrines de qualquer açougue. Tentando correr em sua direção mas sendo segurada pela certeza de que nada poderia fazer para salvar a melhor amiga, a moça ajoelhou-se ali mesmo no sangue que escorria dos restos mortais de sua companheira de quarto enquanto se afogava em seus próprios soluços. Não demorou muito para que o grito de Clarice atraísse a atenção dos demais condôminos daquele andar que chegavam até à porta do apartamento 56 e olhavam a tudo horrorizados, muitos divididos entre a dúvida de ter Clarice assassinado Olívia ou não. Sentindo um par de mãos quentes apoiando em seus ombros, a garota virou-se rapidamente para ver quem a consolava e foi invadida por um clarão de luzes brancas que penetravam seu rosto com um forte cheiro de rosas misturado a erva cidreira.

Abrindo seus olhos e percebendo que tudo não passara de um pesadelo mórbido e muito assustador, Clarice viu-se mais uma vez no clube que havia deixado há pouco mais de meia hora para voltar para casa e se deparar com a cena mais horripilante de sua vida. Definitivamente havia exagerado na bebida desta vez. Ou será que não? Pegando seu celular e ligando loucamente para o telefone de seu apartamento, a garota foi surpreendida pela mesma sensação que sentira ao ver Olívia suspensa pelo ar por uma força sobrenaturalmente maligna. Infelizmente ninguém atendera às ligações. Fazendo o mesmo com o número particular de sua melhor amiga, para apavoramento de Clarice, o resultado acabou por ser o mesmo.

Sem pensar duas vezes, a garota abandonou os amigos que se encontravam na balada sem dizer uma palavra sequer e partiu em direção a seu apartamento correndo desenfreadamente. Pensando em tudo que acabara de presenciar com a premonição demoníaca que tivera há pouco mais de cinco minutos, tudo o que desejava para aquele momento era ultrapassar logo aqueles três longos quarteirões e chegar até sua casa o mais rápido possível. Ela ainda não tinha certeza se o que vira em sua mente era mesmo real ou fruto de sua imaginação aliado ao poder do álcool, mas, de uma coisa Clarice tinha certeza: faria o possível (e o impossível) para evitar a terrível carnificina de sua melhor amiga por aquele visitante inesperado que entrara sem ser convidado.